Fragmento

Poucas passagens de minha infância foram realmente marcantes a ponto de fazer minha saudade chorar. Uma das cenas mais inesquecíveis aconteceram aos meus seis pequenos anos de idade: as tardes nas quais desenhava sobre o chão de madeira da sala, no apartamento em que morei com minha mãe. Dourados pela luz entardecida, os tacos de madeira eram os co-autores do papel branco - o universo sob o qual eu coloria a vida - marcando os meus rabiscos por baixo, com suas divisões, embalados pela cadência de Chico Buarque tocando na antiga vitrola...

Defeito ou qualidade?

Não saberia dizer se configura defeito ou qualidade o excesso de sentimento que meu peito protege e embala. Quando amo ou quando odeio, não os faço. Venerar é meu modus operandi.

Côncavo e convexo

Não saberia dizer se haveria de ser por mera coincidência lingüística o lúcido e o lúdico possuírem significados que se completam e existam tanto na função quanto na forma. Isso porque os signos visuais "c" e "d" ordenam-se de modo sutil em cada uma dessas palavras, propondo-lhes interpretações distintas.

O que é lúcido ilumina nossa percepção e acende a luz no convexo figurativo. Dentro dele, a vida guarda-se inteira preservando cuidadosamente os acontecimentos e as conseqüências da ação. O lúcido amplamente expande-se em sua sólida lógica. O lúcido é o porvir do sonho, berço para a confecção das possibilidades.

O lúdico, destemido de viver o sonho, respira no côncavo o que dentro dele flutua. Possui todas as cores e é abastado de mundo. Um ventre fecundo que impermeabiliza a realidade de outras existências. O lúdico abriga o habitat do imaterial tangível e se recria. O lúdico guarda no tempo o tempo que não há.

A semi-suspensão da virtualidade

Minhas pernas aprenderam finalmente a caminhar.
Alternam-se relativamente bem, uma e outra,
no mesmo ritmo da gota repetente que pula pela torneira.

Meu corpo vai, com cuidado, delineando novos traços -
ele delimita, assim, a futura pausa.
O que penso, já penso bem.
Respeito os ruídos do que sinto.

O primeiro cardume nasceu na imensidão
de água profunda que há em mim.
Mas há apenas um buraco na areia
para onde tudo vai escoar...

Filosofia de bar

Eu ainda prefiro as discussões filosóficas das mesas de bar. Preferencialmente as que são protegidas pelos santos gelados, pois são eles que despertam em nós o conhecimento profundo sobre a falta dele todo.

Poema em folha menor

Em meio às folhas
caíram meus olhos
derramando sob elas
minhas visões do mundo.
Enquanto respiravam,
as gotas escorriam por sobre
a pele verde clorofilada.
Insuspeita natureza,
de lágrimas em compassos,
rodando em meu micro-universo.
E tudo o que era meu, partiu-se:
fluídos coloridos transcenderam no etéreo.

Sobre o que desconheço

Anseio pelo que ainda não conheço. Sendo assim, não posso amar, nem odiar. Apenas desconheço. Experimento o sabor mais verdadeiro do que, embora inexista fisicamente, possui a máxima, a completude que somente o tempo proporciona.

Azul-índio

O índio azul
destituía-se
de toda a sua passagem
pelo Meridiano.

E quanto mais quente,
mais arco-sol ele plantava
na superfície da consequência.

Antropofagia pescada

O velho pescador
derramava sua mão
sobre a rede.

Longo e bem tramado
era o leito oscilante,
que dançava no mar.

Em cada respiro
ele vigiava o micromundo
capturador dos peixes.

Tal como uma bailarina
em rodopios sôfregos
colhia as frutas do imenso.

As carnes brancas cintilavam
sob o sol das tardes vazias
morrendo aos pulos.

Quanto espaço possuía
cada universo daquela trama
em que escaparia o quântico?

Pouco espaço resistia
em prender todos os peixes
na molhada morte.

Uma vida diminuia.
A outra, humana,
engrandecia-se.

E o pôr-do-sol anunciava
na horda de luzes
o próximo futuro pescado...

Eu estou alguém

Eu estou alguém. Na beira da possibilidades, esquinando um futuro de vida.
Eu estou alguém entre o acaso e o palpável, na epiderme do meu campo tátil.
Renovada, reciclada, refeita. Meu rarefeito efêmero, outrora, pôs-se feito de raridades. Hoje é ocaso.
Eu estou alguém de fero instinto. Andarilha sobre o caminho que se faz a medida em que eu faço o caminho.
E caminho. Mais um pouco.

Sobre o menino que andava sobre a pele dele mesmo

Hoje meu dia amanheceu assim meio galático. Ontem à noite andei por entre chãos de buracos vazios e cheios de ar. Eu me contive para não morrer de medo, pois a cada passo eu tinha a sensação de que cairia em algum deles e seria o fim do meu fim. Ao mesmo tempo, essa leve insegurança tátil não me prendia ao solo. Eu me sentia tão livre quanto o ar, que dançava por entre meu corpo. E eu queria mais. Porque, diferentemente dos chãos habituais pelos quais já havia andado, aquele novo chão possuía algum macio recheado, confortante. Era como se andasse por cima de enormes colchões d'água, que oscilam em sutis movimentos a cada passo que se ousa alcançar.

Em minhas descobertas noturnas eu também pude sentir uma luz asfixiante. Nela continham partículas ultradimensionais cósmicas, que proporcionavam uma cegueira direta, dura. Foi essa luz que guiou meu todo durante o percurso. E os meus olhos... definitivamente meus olhos não eram mais os mesmos. Ou, ainda que fossem os mesmos olhos, minha visão era distinta e subia, a cada passo, os degraus mais altos de minha equívoca compreensão.

Eu caminhei durante toda a noite sob a fluidez embriagante do chão e da luz. Eu existia ao redor de tudo o que eu era. Enquanto eu estiver vivendo, eu sei que estarei vivo. 

Breve Exegese do Excesso

Eu, filha única de pais separados, vivi boa parte da minha infância e adolescência rodeada de adultos. Desde então, espalhei-me em meu próprio eu. Sozinha em meu universo, construído pelo meu espírito lúdico, criativo, imergi quase totalmente nesse mundo, oxigenando-me de certezas inatingíveis, sonhos improváveis e medos coloridos. E era em minha imensa mandala de ideias onde eu refugiava minha vida e meus sentimentos, escondendo-os do mundo real, para que não fossem roubados ou esmagados por alguma formiga.

Reconfortava-me a proteção daquele útero mandálico recheado de texturas, cores e padrões... Não tinha com o quê me preocupar, a não ser qual seria meu próximo sonho. Selecionava instintivamente quais seriam os próximos frames para compor meu universo.

Mas um dia, a vida real bateu em minha porta e eu a convidei para entrar. Foi aí que tudo o que eu acreditava até então desabaria em minha frente... Definitivamente, não sou mais quem um dia eu fui. Hoje me sinto mais feliz, mais equilibrada e muito mais determinada, focada em mim, em minha nova vida.

Sou (acho que sempre serei) uma pessoa cujo coração precisa de excessos. Sou da arte, da densa camada do Cosmos. Sou todas as cores. Gosto do complexo, da transcendência. Acredito que por isso mesmo, poucos suportem e compreendam essa minha natureza etérea e essa minha personalidade "difícil". Eu não quero a superfície. Quero mergulhar, buscar o novo, descobrir o impenetrável. É isso que enriquece minha vida e alimenta minha essência.

As cores que eu respiro das águas profundas do meu oceano se transformam em um querer latente de colorir o mundo todo.